22/10/14
Violência, crime e justiça no Brasil
Pobreza gera violência?
Como já vimos, Michel Foucault tinha um interesse especial pelos temas da violência e da disciplina. Ele queria entender de que maneira e por que
razões as diferentes sociedades estabelecem aquilo que as pessoas devem fazer e
aquilo que é visto como inapropriado (e implica algum tipo de punição ou
sanção). Como explicar que certos comportamentos e atitudes, antes vistos como
justos e corretos por determinado grupo social, sejam por ele repudiados mais
adiante? O caso da abolição da pena de morte no Brasil é um bom exemplo dessa
mudança de atitude em relação à concepção de justiça. Como explicar que em
determinadas situações o uso da violência seja visto como justo e legítimo e em
outras como abominável e ilícito? Durante muito tempo, nos lembra Foucault, a lei
da violência, mais do que a violência da lei, foi vista como a única forma
legítima de fazer justiça. Torturas longas e cruéis eram aplicadas no intuito
de restabelecer a ordem interrompida pelo crime ou pela transgressão. Mas, a
partir do século XVIII, as torturas corporais e as humilhações morais foram
pouco a pouco substituídas pela ideia da “punição humanizada”. As penas
corporais passaram a ser consideradas inaceitáveis, e em seu lugar foram
propostas outras maneiras de “resgatar o homem por detrás do criminoso”. Na
base dessas alterações, a sociedade contava com novos saberes desenvolvidos em
campos distintos do conhecimento como a criminologia, a psiquiatria e a
sociologia. O objetivo já não era simplesmente
condenar quem cometeu a falta, mas reabilitar o criminoso como cidadão.
Ao longo de mais de duzentos anos assistimos ao que Michel Foucault
chamou de “humanização dos processos penais”. A justiça deixou de ser executada
em praça pública para se realizar nos tribunais; em vez de corpos esquartejados,
os condenados deveriam ser levados para as prisões. O criminoso passou de
objeto passivo da vontade do soberano a sujeito detentor de direitos – direito
à defesa, a um julgamento justo, à reintegração à sociedade uma vez cumprida a
pena. O sistema judiciário como um todo tornou-se mais racional.
Essa relação
causal pobreza-crime já havia sido contestada em 1978 por Edmundo Campos Coelho
(1939-2001). O sociólogo mineiro chamava a atenção para o fato de que os
períodos de crise econômica, quando aumentam as taxas de desemprego, não são os
de maior aumento de taxa de crimes violentos. Para o autor, a associação a ser
estudada era entre crime e impunidade penal. O que quer dizer isso? Quer dizer
que não punir o criminoso gera mais crime do que situações de carência ou
desemprego. Quer dizer que a sociedade sinaliza para os indivíduos que o crime
vale a pena, compensa. Ainda hoje, convivemos com altíssimas taxas de
impunidade para homicídios praticados pela polícia, por grupos de segurança
privada, pelos chamados grupos de extermínio e por criminosos que influenciam,
de alguma maneira, o resultado do processo punição. Homicídios que vitimizam
trabalhadores rurais e lideranças sindicais também seguem, muitas vezes,
impunes. As taxas de impunidade para crimes do colarinho branco, ainda tão
expressivas, contribuem igualmente para a descrença dos cidadãos nas
instituições promotoras de justiça. Vale lembrar, que na pesquisa “Cidadania,
justiça e violência” (citada no capítulo anterior), entre as pessoas
entrevistadas, 97,5% pensavam que, diante de um mesmo crime cometido, um rico
seria tratado com mais complacência pela Justiça do que um pobre.
Mas nós bem sabemos que no caso do Brasil e de outras tantas nações, a
racionalização dos procedimentos penais não levou nem a um desaparecimento da
violência na aplicação da lei, nem a uma contenção satisfatória do crime. Se
hoje temos mais prisões, advogados, juízes e policiais do que jamais tivemos em
nossa história, onde está a explicação para o aumento no número de delitos
violentos entre nós? Por que será que a polícia brasileira está entre as mais
sanguinárias do mundo? Devemos buscar as causas da violência na pobreza, no
desemprego e nos baixos índices de educação? Ou será que a culpa é do nosso
sistema judiciário, tido por muitos como ineficiente e guardião de leis
inadequadas? Essas são perguntas extremamente polêmicas e complexas. Vejamos
como alguns cientistas sociais brasileiros vêm enfrentando o desafio de respondê-las.
No início dos anos 1980, o conjunto habitacional Cidade de Deus, na Zona
Oeste do Rio de Janeiro, tinha se tornado
conhecido como uma das localidades mais violentas do país. Os meios de
comunicação, em sua maioria, referiam-se à população do local como “perigosa”,
“bandida” e “sem escrúpulos”. Nessa mesma época, e nessa mesma localidade, a
antropóloga Alba Zaluar deu início a uma pesquisa que iria resultar em um dos
livros mais influentes no campo dos estudos sobre violência urbana – A máquina
e a revolta.
A partir de um intenso trabalho de campo, Alba Zaluar nos apresenta o
cotidiano dos moradores da Cidade de Deus e desvincula duas noções que, no
discurso do senso comum, aparecem quase sempre associadas: pobreza e violência.
Essa associação, tão difundida entre nós, desenha um círculo de encadeamentos
lógicos: o indivíduo é violento porque é pobre, é pobre porque não tem acesso à
educação, não tendo educação não sabe votar nem exigir seus direitos. Nesse
círculo vicioso, a criminalidade aparece como uma consequência automática e
praticamente inevitável.
Alba Zaluar nos diz que é preciso interromper esse encadeamento lógico
se nos interessa realmente entender o problema da violência urbana, não apenas
na “Cidade de Deus”, mas em qualquer outra cidade brasileira. A pobreza,
insiste a antropóloga, não é um ingrediente óbvio da criminalidade. Se assim o
fosse, todos os pobres seriam necessariamente criminosos, e todos os criminosos
seriam pobres – o que está longe de ser verdade, como comprovam os chamados
crimes do colarinho branco cometidos por cidadãos precedentes das classes
médias e altas da sociedade.
Porém, ainda hoje, a lógica que associa pobreza e criminalidade segue
prevalecendo no imaginário social, tendo que ser continuamente recusada por
vários cientistas sociais. A grande maioria
dos habitantes de lugares violentos e segregados – demonstram os pesquisadores
– são trabalhadores honestos que repudiam a criminalidade e cujas aspirações
são bastante semelhantes àquelas das camadas médias: ter uma casa confortável,
oferecer uma boa educação para os filhos, ver a família progredir por meio do
trabalho honrado. Se a explicação para a violência não está na pobreza, onde
estará?
Há sociedades muito pobres, como a indiana, em que os índices de
criminalidade são baixíssimos, muito mais baixos do que os de uma nação rica
como os Estados Unidos. A desigualdade, e não a pobreza, tende a resultar em
violência no contexto da sociedade de consumo. No Brasil o acesso ao consumo
ampliou-se significativamente nas últimas décadas, mas está longe de incluir a
todos. E mais: os pobres seguem tendo seus direitos civis (releia o capítulo
anterior) muitas vezes desrespeitados. Seu acesso às instituições promotoras do
bem-estar e da cidadania é significativamente mais restrito quando comparado
com os das camadas médias e altas. Daí muita gente dizer que, no Brasil alguns
são mais cidadãos do que os outros. Temos cidadãos de primeira e de segunda classe...
Alba Zaluar sugere que muitos jovens pobres optam por fazer parte de
redes criminosas porque elas podem lhes oferecer prestígio e poder. Um poder
que se baseia sobretudo em uma cultura da masculinidade, uma maneira de ser que
opera de acordo com a lógica da guerra, um ideal que busca reconhecimento por
meio da imposição do medo. Essa rede aspira a um estilo de vida em
que ganham destaque bens de consumo cujo acesso dificilmente poderia ser
alcançado por esses jovens e seus familiares. Assim como os jovens das camadas
médias e das elites, jovens pobres desejam consumir o tênis de marca, a calça
da moda, o celular mais moderno, ou seja, bens associados a alto prestígio e
status, que são veiculados diariamente pelos meios de comunicação de massa.
Mas, como constatamos cada vez mais, junto com o prestígio e o poder
possibilitados pelos lucros obtidos com o comércio de drogas ilícitas, muitas
vezes vem a morte precoce e violenta. Alba Zaluar nos lembra, ainda, que a
chance de morrer precocemente não é exclusiva dos jovens que aderem à rede
criminosa: todos os que moram em zonas “dominadas” pela lógica da guerra – ou
seja, pelos narcotraficantes - estão igualmente expostos à chance de morrer de
forma violenta e arbitrária. As pesquisas mostram que nas regiões
metropolitanas a maioria das mortes violentas vitimam rapazes negros e pardos.
Como argumenta outro especialista no tema da violência urbana, Michel Misse, o
fato de a maioria de presos ser de pobres, negros, jovens e desocupados também
se deve à existência de um “roteiro típico” seguido pela polícia, que associa
de antemão a pobreza (e a juventude não branca) à criminalidade.
- Fazer uma Síntese
sobre o texto acima, no mínimo 10 linhas;
Ai cada um faz a sua...